Ana Estela Haddad esteve na construção do Prouni Imagem: Keiney Andrade/UOL Taís Ilheu - Colaboração para Ecoa, de Extrema (MG) Foi em ...
Taís Ilheu - Colaboração para Ecoa, de Extrema (MG)
Foi em 2003, dentro de uma sala pequena, sem janelas e com apenas um computador sobre uma mesa, que Ana Estela Haddad leu a carta que lhe acendeu a fagulha de uma ideia que transformou a vida de milhões de pessoas. Endereçada ao então presidente Lula, a carta fora escrita por uma mãe que havia perdido o filho há pouco tempo, mas que todos os semestres era obrigada a reviver o luto quando dirigia-se a uma agência bancária. Por ter sido fiadora do filho, beneficiário do Fies, precisou assumir a dívida do financiamento estudantil após a morte do jovem, seis meses depois de se graduar engenheiro.
Somadas a outras dezenas de cartas de jovens pobres e inadimplentes do Fies, Ana Estela começou a questionar-se porque o Ministério da Educação não tinha um programa de bolsas que atendesse a população de baixa renda.
Talvez nem Ana Estela, odontopediatra e professora na USP, imaginasse que histórias exatamente como essas chegariam centenas de vezes aos seus ouvidos e aos de seu companheiro, Fernando Haddad, nos anos seguintes à criação do Programa Universidade para Todos. A Ecoa, a mente por trás da criação do primeiro programa de bolsas para o ensino superior no Brasil falou sobre os bastidores da gestão pública e sobre os impactos da pandemia na saúde e na educação. Ecoa - Em 2003, você foi convidada por Cristovam Buarque a compor a gestão dele no MEC. Foi sua primeira experiência em cargos de gestão pública, mas ainda assim você encabeçou a criação de programas importantes. Como surgiu a ideia do Prouni?
Ana Estela Haddad - Lula sempre foi um presidente popular, então ele recebia muitas cartas. A presidência tinha um centro de documentação histórica onde as cartas eram recebidas e analisadas e, conforme o tema, eram encaminhadas para os ministérios. O MEC já tinha algumas respostas padrão que respondiam a muita coisa, mas havia um conjunto de cartas mais complexas que esse setor padrão não dava conta de responder, e essas vinham para mim. Eram muitas e muitas cartas. Quando estava quase zerando, chegava mais um bloco. Mas com elas comecei a ter uma amostra de quais eram as principais dores da população.
Chegavam muitas reclamações sobre o Fies, de pessoas que haviam contraído a dívida para fazer faculdade, que não conseguiam uma colocação no mercado de trabalho à altura de pagar e já começavam a vida no negativo. Essas histórias e essas cartas fizeram com que eu mergulhasse em pesquisas. Observei que quase 80% do ensino superior naquele momento era privado, apenas 20% público. Que a gente tinha proporcionalmente um baixo número de vagas em cursos noturnos e muitos cursos diurnos. E que tinha mais ou menos 40% da capacidade instalada de educação superior privada ociosa. Ou seja, estava instalado, autorizado a funcionar, mas não estava ocupado. Naquele momento, apenas 10% dos jovens de 18 a 24 anos conseguiam fazer educação superior no país. Esse foi um conjunto de informações que foi vital para eu me sentir incomodada.
Tendo essas informações todas, eu também me lembrei que o Fernando [Haddad], quando foi subsecretário de finanças em São Paulo na gestão da Marta Suplicy, às vezes me contava de algumas ações que eles faziam. Tinham, em São Paulo, professores da educação básica que precisavam fazer o ensino superior, e também tinham instituições privadas que ofereciam cursos de pedagogia e que deviam ISS, que era o imposto municipal. Eles tentaram fazer um acordo com essas instituições para trocar essas dívidas por vagas. Lembrei disso e da época em que trabalhei numa instituição privada de ensino superior que era filantrópica. Eles computavam como filantropia os atendimentos odontológicos, médicos e jurídicos, que na verdade tinham uma finalidade pedagógica.
Conversei com o Fernando sobre isso e me veio a ideia: será que essas instituições que acabam tendo isenção de impostos por filantropia não deveriam oferecer vagas para os jovens? Isso não poderia ser um programa de bolsas? Foi a ideia que nasceu na minha salinha. Mas esse é só o começo. No fundo, não basta uma boa ideia, e hoje eu tenho certeza disso. São muitos passos, muita teimosia, força política, visão e estratégia.
Poucas pessoas sabem que você é uma das mentes por trás do Prouni e de outros programas importantes. Quem assume os bastidores da gestão pública recebe menos reconhecimento público?
Claro que quanto mais exposição e força política você tem, para o bem e para o mal, também tem mais visibilidade. Certamente é importante que a gente sempre dê os créditos para as pessoas, mas eu estava com esse projeto há muitos meses, passei em várias áreas do ministério falando sobre a importância dele e ninguém me deu ouvidos. Só foi para frente quando o ministro Tarso Genro chegou. A pessoa que está politicamente à frente do processo, que vê uma ideia e decide comprar a briga, é quem está na cadeira com a caneta na mão, então a bomba vem para cima dela também. O processo é uma combinação. E também porque não fui só eu que apresentei a ideia, fui eu e o Fernando. A credibilidade de quem apresenta também conta pontos.
Essa semana, o presidente Jair Bolsonaro editou uma Medida Provisória que vai permitir que alunos vindos da rede privada pleiteiem uma vaga no Prouni. O que já é possível dizer sobre essa mudança?
Se a gente considerar o Prouni, as mudanças que foram feitas no Fies e o Reuni, que dobrou também a rede de universidades federais, mais de 3 milhões de jovens que não tinham acesso à educação superior passaram a ter. O Fernando estava conversando com alguns jovens um tempo atrás e um chegou e falou "eu sei que vocês já ouviram várias vezes a história do filho do pedreiro que virou engenheiro, mas o que eu vim contar hoje é uma novidade. É que não é só eu que sou filho do pedreiro, virei engenheiro e estou fazendo mestrado, mas agora o meu pai que é pedreiro também vai virar engenheiro". Então a primeira coisa a dizer é que o Prouni foi uma política extremamente bem-sucedida.
Antes de examinar essa medida provisória que saiu, eu tenho procurado ouvir as pessoas que são da área jurídica. Ainda não consigo ter total clareza sobre os desdobramentos tanto jurídicos quanto práticos dessas mudanças que estão sendo propostas. Acho que a gente precisa se aprofundar no debate, entender melhor, conhecer também a evolução dos dados e informações sobre o aproveitamento das bolsas para fazer um debate bem informado. A única coisa que eu torço é para que esse debate possa levar em conta a vontade da sociedade.
O que é urgente em relação ao ensino básico e às crianças e adolescentes?
A pandemia trouxe um contexto completamente novo e diferente. Tem um dado da Unesco de que 47% dos estudantes da Educação Básica no mundo não conseguiram ter acesso ao ensino remoto por falta de acesso à internet. Então esse já é um sinal, é uma questão que precisa ser endereçada. Também tem a questão da saúde mental que afetou e ainda está afetando a todos nesse momento. As crianças têm muitos problemas e sequelas que a gente ainda não conseguiu aferir suficientemente, talvez nem esteja visibilizando. Esse distanciamento físico, a falta de oportunidade para a socialização, de estar ao ar livre. Tem ainda a iminência da doença, da morte na família e o luto, já que muitas crianças ficaram órfãs nesta pandemia.
Você atua diretamente em duas áreas que sofreram impactos profundos nos últimos anos. O que será necessário para recuperar os danos na área de saúde e da educação no país?
Essa é a pergunta de um bilhão de dólares! Eu tenho ouvido bastante gente, lido alguns autores e aprendido com as pessoas que estão refletindo sobre isso. A gente está vivendo nesse momento o que os autores têm chamado de uma sindemia, que vai além de uma pandemia. Porque são muitas camadas de crise. Então começa com o entendimento dessa doença do ponto de vista molecular, celular, de imunidade ou da saúde. Depois do ponto de vista sanitário, epidemiológico até você chegar no aspecto econômico, social e político.
A primeira coisa que a gente precisa fazer é entender um pouquinho melhor esse fenômeno que aconteceu, quais as lições que a gente pode tirar para poder construir daqui para frente. Uma delas, sem dúvida nenhuma, é a importância do sistema público de saúde. Precisamos parar de desmontar o SUS, parar de subfinanciar. Vale pra educação também. Uma educação pública de qualidade é fundamental. O coletivo é muito importante, se olharmos só para o individual nós não conseguiremos sair dessa situação de crise em que a gente se encontra. Precisamos combater a desigualdade, não dá mais para uns pensarem em ir para a lua, enquanto outros não conseguem comer e se alimentar com uma refeição por dia.
Da redação com informações do Portal da UOL
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