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Thamiris Marques ingressou na Universidade de Brasília (UnB) pelo sistema de cotas em 2009. Aos 18 anos, ela foi a primeira da família a frequentar uma universidade pública. Pioneira entre as universidades federais, a UnB já contava com ações afirmativas antes mesmo da Lei de Cotas, que completa dez anos em 2022. A própria norma prevê sua revisão neste ano, o que reacendeu o debate sobre o tema e promete mobilizar o Congresso. O ponto que gera maior controvérsia é o teor racial da reserva de parte das vagas, ou seja, a garantia de cadeiras para alunos negros e indígenas.
Thamiris, que sempre estudou em escola pública, já tinha tentado vestibular antes, sem sucesso. Decidiu, então, concorrer a uma vaga pelas cotas no curso de serviço social, conquistada com um recurso após ser reprovada em entrevista para confirmar sua afrodescendência. Ela conta que não tinha a mesma consciência racial de hoje, o que pode ter pesado em suas respostas e em sua inicial desclassificação. Mas Thamiris não desistiu e, após escrever um texto sobre suas origens e vivências, garantiu a vaga.
De acordo com a hoje assistente social, entrar e concluir a formação superior foi uma vitória de toda a sua família e representou o rompimento de um histórico de acesso limitado à educação. Ela, que se formou em 2014, afirma que serviu de exemplo para outros familiares e pessoas do seu convívio. Para Thamiris, a política de cotas ampliou a diversidade nas universidades públicas e se consolidou como um instrumento de reparação.
“Ao abrir as portas e mostrar possibilidades de um futuro diferente, a Lei de Cotas mudou não apenas a minha vida, mas a de uma família inteira. As cotas me deram a oportunidade de ter acesso a esse conhecimento, a essa educação e a outro mundo. Pude romper com um ciclo que vinha desde a minha avó, que não teve acesso a educação, e minha mãe, que nem chegou a concluir o ensino médio. Hoje, sou uma pessoa formada e isso, na minha família, serviu de exemplo para mostrar para outras pessoas que é possível. Defendo a continuidade da política de cotas como forma de reparação histórica para a população negra”, disse Thamiris.
Assim como Thamiris Marques, milhares de jovens que antes não viam a possibilidade de cursar o ensino superior passaram, com as cotas, a reivindicar e ocupar espaços nas universidades e institutos federais. De acordo com a pesquisa "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil", do IBGE, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou pela primeira vez o de brancos em 2018, totalizando 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública. Apesar de maioria, esse grupo permanecia sub-representado já que correspondia a 55,8% da população brasileira.
Já o Censo da Educação Superior 2019, feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apontava que brancos ainda eram maioria somando universidades públicas e privadas: 42,6%. Pardos somavam 31,1%; pretos, 7,1%; amarelos, 1,7%; e indígenas, 0,7%. A raça/cor de 16% era desconhecida.
A mudança no perfil nas universidades brasileiras com as cotas também fica evidente com dados de um levantamento da Agência Senado em três das maiores universidades brasileiras.
Estandarte do sistema de cotas, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi a pioneira na adoção da política afirmativa no país. Desde o vestibular de 2003, parte das vagas é destinada a alunos autodeclarados negros e pardos e estudantes da rede pública de ensino, com base na situação socioeconômica dos candidatos. De acordo com informações apuradas pela reportagem, 3.056 estudantes ingressaram via sistema de cotas no primeiro vestibular da Uerj. Em 2020, a universidade contava com 7.553 alunos cotistas vinculados.
Também do Rio de Janeiro, a UFRJ registrou um aumento significativo de estudantes negros (pretos e pardos) desde a adoção das cotas no processo seletivo de 2011. De acordo com a Pró-Reitoria de Graduação da UFRJ, o percentual de estudantes declarados negros (pretos e pardos) era pouco superior a 20% antes da adoção das cotas e, atualmente, gira em torno de 35%.
Precursora entre as federais, a UnB aprovou a política afirmativa em 2003, mas a regra começou a valer no ano seguinte. Atualmente, o total de vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas nos processos seletivos da instituição, considerada a adoção de todas as políticas vigentes, corresponde a um terço do total (33,5%). Em 2012, quando a Lei das Cotas foi sancionada, 10.680 estudantes pretos e pardos — de um total de 41.767 — estudavam na instituição. Hoje, somam 15.574 estudantes de um total de 42.929.
Projeto propõe tornar permanente
O que acontece com as cotas se deputados e senadores não avançarem em uma revisão em 2022? Apesar de prever essa avaliação após dez anos de vigência, a redação da lei não estabeleceu como esse processo deveria ocorrer e a que critérios obedeceria. De acordo com a coordenadora da área de direitos humanos e cidadania da Consultoria Legislativa do Senado, Roberta Viegas, a Lei de Cotas não previu prazo para a sua extinção, ou seja, mesmo sem a revisão, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por lei.
“A lei permanece em vigor e somente uma lei poderá revogá-la. Acredito que seria necessário, fundamental até, uma ampla discussão prévia à revisão legal, senão essa revisão não necessariamente atenderia às atuais necessidades da população alvo da lei de cotas — apontou a consultora.
No Congresso Nacional, tramitam vários projetos sobre o tema para preencher esse vácuo. De um lado, matérias propõem a ampliação do prazo para a revisão nacional ou a transformação da Lei de Cotas em política permanente no país. Por outro lado, há projetos que defendem a exclusão do critério étnico-racial para o acesso ao ensino.
O PL 4.656/2020, do senador Paulo Paim (PT-RS), estabelece a revisão da Lei de Cotas a cada dez anos, entre outras mudanças. O projeto também propõe que as cotas sejam aplicadas aos processos seletivos em todos os cursos de graduação de instituições particulares. Para o senador, qualquer redução na política de cotas significaria "um pesado golpe nas camadas mais necessitadas e discriminadas da população". Ele ressalta que a lei trouxe avanços no acesso ao ensino superior.
“O Congresso Nacional precisa reafirmar essa política exemplar que registra, entre 2010 e 2019, o crescimento de quase 400% no número de alunos negros e negras no ensino superior”, destaca Paim. O senador defende a aprovação do projeto de forma a assegurar a validade das cotas por, ao menos, mais 10 anos. Paim sugere também a criação de uma espécie de “gatilho” para assegurar que a reserva de vagas volte a ser acionada sempre que os percentuais de pretos, pardos e indígenas fiquem abaixo da proporção dessa população conforme o IBGE.
“Propomos que a suspensão das cotas possa se dar apenas após um intervalo de mais cinco anos, assegurada a sua aplicação no caso de redução da proporção verificada a partir da suspensão. Dessa forma, haveria um gatilho garantindo o retorno à aplicação das cotas, como mecanismo de regulação da oferta de vagas, em benefício de seus objetivos, como meta permanente”, aponta o senador na justificativa da proposta.
Outros projetos na Casa buscam incluir mais grupos na reserva de vagas ou mesmo tornar a política de inclusão permanente. É o caso do PL 1.676/2021, do senador Rogério Carvalho (PT-SE), que considera que a ação afirmativa deve ser consolidada na legislação nacional. Na avaliação do senador, a política de reserva de vagas mudou o país para melhor.
“É natural que a reserva, que se demonstrou tão bem-sucedida, se incorpore, em caráter definitivo, ao rol de políticas públicas do Estado brasileiro”, aponta Rogério no texto. Já Confúcio Moura (MDB-RO) considera que a política deve ser estendida por lei para os cursos de pós-graduação. Atualmente, algumas universidades, como a UnB, já adotam cotas para seus cursos de mestrado e doutorado.
“Para que se maximize o objetivo reparatório e o efeito socialmente equalizador da reserva de vagas, é urgente que esses programas que formam os profissionais e pensadores do país incluam os segmentos sociais e étnicos destinatários do sistema de cotas”, aponta.
Proposta elimina cota em universidades
Um dos projetos de lei que está em tramitação no Congresso Nacional e trata de cotas em universidades públicas elimina o critério racial de reserva de vagas em universidades e institutos federais de ensino. “Se os brasileiros devem ser tratados com igualdade jurídica, pretos, pardos e indígenas não deveriam ser destinatários de políticas públicas que criam, artificialmente, divisões entre brasileiros, com potencialidade de criar indevidamente conflitos sociais desnecessários. Se o disposto na Carta Magna se aplica a todos os âmbitos, não se deve dar tratamento legal diferenciado para a questão racial para o ingresso na educação pública federal de nível médio e superior”, defende a autora da proposta, deputada Professora Dayane Pimentel (PSL-BA).
O texto mantém a cota para pessoas com deficiência e a cota social. O mesmo caminho é defendido pelo deputado Dr. Jaziel (PL-CE) no PL 5.303/2019, que foi apensado ao projeto da Professora Dayane Pimentel. Para ele, a lei deveria contemplar exclusivamente jovens de baixa renda e pessoas com deficiência.
“A educação superior pública, bem como o ensino médio técnico público, devem ser de acesso a todo e qualquer brasileiro, independentemente da cor e da raça. Cabe unicamente beneficiar aqueles que sejam egressos das instituições de ensino público e de baixa renda, assim como as pessoas com deficiência, critérios que são mantidos na norma legal”, argumenta o parlamentar.
Para a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), revogar o teor racial das cotas está fora de questão. Ela aponta que o Supremo Tribunal Federal já atestou a constitucionalidade da reserva de vagas e aponta que a Lei de Cotas é uma reparação histórica diante da escravidão e dos efeitos do racismo estrutural. Se depender dela, a reserva de vagas seguirá em funcionamento por muitas décadas.
”Sou a favor da prorrogação da política de cotas e por um período longo. Foram 300 anos de escravidão, o Brasil foi o último país da América Latina a libertar os escravizados, então, este país tem uma dívida histórica imensa com a população negra”, defendeu a senadora.
Da redação com informações do site: http://www.tribunadonorte.com.br/
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