A guerra tarifária promovida pelo presidente Donald Trump reflete o fim da hegemonia dos EUA no sistema internacional, buscando reverter a d...
A guerra tarifária promovida pelo presidente Donald Trump reflete o fim da hegemonia dos EUA no sistema internacional, buscando reverter a decadência industrial e o déficit comercial com protecionismo, mas não contém o avanço estratégico da China
O mundo vive um período de grande instabilidade comercial em razão das elevadas tarifas impostas pelo presidente Donald Trump ao comércio internacional, cujo alvo principal é a China.
O republicano busca deixar os Estados Unidos “ricos novamente a partir das tarifas”, repetindo a política adotada durante o século XIX, além de reforçar seu poder nacional na disputa estratégica internacional.
Neste texto, busca analisar a guerra tarifária desencadeada por Trump a partir de duas considerações: (i) as políticas adotadas por Trump como um reflexo da decadência estadunidense global e (ii) a insuficiência da guerra tarifária como mecanismo para impedir o avanço da China na competição estratégica global à qual me referi anteriormente.
Nas últimas 5 décadas, a economia estadunidense tem passado por uma transição e consolidação da financeirização, com uma redução de seu ímpeto industrial e focalização nos ganhos financeiros de curto prazo (sobre o tema, recomendo a produção “Indústria Americana”).
O resultado lógico desse processo é uma decadência nas infraestruturas públicas e uma deterioração da condição de vida da classe trabalhadora estadunidense, um dos principais motores do poder econômico-industrial estadunidense durante os séculos XIX e XX.
Inspirando-se na política que fundamentou as bases da prosperidade estadunidense, Trump e sua equipe entendem que a solução lógica a ser adotada é a repetição do protecionismo comercial.
Para os ideólogos republicanos, a guerra comercial tem o papel de aumentar a entrada de recursos financeiros nos Estados Unidos, reduzindo o gigantesco déficit comercial que subsiste há décadas.
Além disso, as elevadas tarifas buscam desvalorizar o dólar em relação ao resto do mundo, aumentando a competitividade industrial dos produtos estadunidenses e favorecendo o objetivo de reindustrialização dos ianques (para uma compreensão mais aprofundada dos objetivos econômicos da guerra comercial de Trump, recomendo o artigo, em inglês, de Stephen Miran, “user’s guide to restructuring the global system”).
Como bem observa o professor Michael Hudson em seu texto “O retorno dos barões-ladrões”,a equipe econômica e ideológica de Trump desconsidera que as tarifas elevadas dos séculos XIX e XX foram apenas um dos pilares de um maciço programa industrializante que permitiu aos Estados Unidos tornar-se uma superpotência mundial.
As tarifas são, na realidade, o método posto em prática por Trump para financiar os gastos governamentais ao mesmo tempo, em que promove cortes significativos de tarifas para os grandes conglomerados econômicos dos Estados Unidos, notadamente as grandes companhias de petróleo e tecnologia.
O objetivo do presidente é, portanto, estimular a economia estadunidense pelos meios tradicionais ao mesmo tempo que empurra os Estados Unidos na corrida tecnológica contra a China.
Esse conjunto de medidas reflete a nova situação internacional, na qual os Estados Unidos já não são a única superpotência econômica. O conjunto de instituições e regras criadas pelos próprios estadunidenses ao fim da Segunda Guerra Mundial, o qual lhes favoreceu imensamente desde então, não mais consegue fornecer as respostas e os mecanismos necessários para o desenvolvimento social, industrial e econômico dos Estados Unidos.
Na base deste problema se encontra a liberalização massiva e o tremendo corte de gastos dos anos 1980, especialmente promovidos durante os anos do governo Reagan.
Ao estimular um processo de financeirização da economia sob a crença de que uma avalanche de recursos privados subsidiaria o desenvolvimento econômico e industrial, os Estados Unidos acabaram por criar um sistema no qual a atividade industrial passou a se submeter gradativamente aos ganhos nos mercados financeiros.
Ao mesmo tempo, a abertura internacional controlada e gradual da China lançou as bases para o surgimento de um competidor estratégico de peso, cujos níveis de planificação econômica, potencial do mercado consumidor e da força de trabalho permitiram-lhe colocar em prática uma experiência de desenvolvimento econômico historicamente sem precedentes.
A criação de um modelo econômico e político próprio à realidade chinesa permitiu que o país asiático construísse uma infraestrutura de ponta e que suas empresas passassem a produzir bens de alto valor agregado, tornando-a também um grande competidor estratégico internacional em tecnologia.
Igualmente, o sucesso do modelo econômico legitimou o partido comunista junto à população.
De fato, o modelo econômico chinês e o sucesso das políticas industrial, cambial e tecnológica são populares não somente do ponto de vista doméstico, mas servem de inspiração para um conjunto de países que continuam a buscar um modelo próprio de superação de suas desigualdades socioeconômicas.
A China se coloca, assim, como um grande competidor estratégico face aos Estados Unidos. Em razão da coesão social e política e da eficiência de seu modelo econômico, o qual fornece soluções concretas aos principais desafios de desenvolvimento do país, a guerra tarifária não será capaz de limitar o poder de competição chinês.
Para que os Estados Unidos consigam ganhar a competição estratégica internacional, o protecionismo de Trump terá de ser um dos pilares de uma política de redesenvolvimento nacional mais ampla, a qual considere a retomada de políticas industriais, redução das desigualdades sociais domésticas e redução do nível de financeirização da economia estadunidense, problema central de seu modelo econômico. Esta é a história que marcará nosso século.
Da redação do Portal de Notícias
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